Ailton Krenak

    A Vida Não É Útil – Ailton Krenak e o Pensamento da Diferença

    Ailton Krenak, em A Vida Não É Útil, desmonta certezas que sustentam o modelo ocidental de sociedade, propondo uma visão de mundo que ressoa profundamente com o pensamento da diferença de Spinoza, Nietzsche, Deleuze e outros filósofos que desafiaram a tradição dominante. Seu olhar não é apenas uma crítica à modernidade capitalista, mas um convite para repensarmos nossa relação com a Terra, com o tempo e com a própria ideia de humanidade.

    A seguir, analisamos os principais pontos do livro e os conectamos com a filosofia da imanência e da diferença.


    1. O “Progresso” como Catástrofe – A Crítica ao Mundo Ocidental

    Krenak questiona a ideia de progresso como um valor absoluto. Para ele, o avanço tecnológico e econômico não representa um aprimoramento da vida, mas sim uma aceleração da destruição. O mundo ocidental criou um modo de vida que destrói a própria possibilidade de vida, naturalizando o esgotamento dos recursos e a alienação humana.

    Essa crítica dialoga diretamente com Nietzsche, que denunciava a moral da decadência, a fixação em ideais transcendentes e o niilismo passivo, no qual a humanidade se torna refém de valores que a enfraquecem. Assim como Nietzsche identificava a ascensão da racionalidade ocidental como um movimento de negação da vida, Krenak vê no progresso moderno uma desconexão profunda com a Terra, um afastamento da existência enquanto fluxo contínuo e relacional.

    Spinoza e a Potência da Existência

    Spinoza diz que não existe um destino fixo, mas apenas relações de composição e decomposição entre seres e forças. O que chamamos de progresso poderia ser apenas um modo de decomposição generalizada, no qual o mundo humano se torna incapaz de sustentar modos de existência que potencializem a vida. Para Krenak, essa visão reducionista e utilitária da natureza reflete uma incapacidade de perceber a realidade na sua complexidade.


    2. A Vida Não É Útil – Contra a Lógica da Mercadoria

    A provocação que dá título ao livro nos obriga a questionar: útil para quem? A sociedade ocidental transforma tudo em recurso – as florestas, os rios, os animais, os corpos humanos. Mas Krenak responde: a vida não é um meio para um fim. A vida é.

    Essa recusa da utilidade ecoa a concepção de Deleuze e Guattari sobre os fluxos desejantes. Para eles, o desejo não é falta nem carência – ele é produção, criação, expansão. Quando uma sociedade define a vida pelo critério da utilidade, ela está capturando o desejo e limitando sua potência de criar. Krenak nos convida a pensar como sair dessa captura, como experimentar a existência fora do paradigma produtivista.

    Nietzsche e a Afirmação da Vida

    Para Nietzsche, a decadência da cultura ocidental se expressa na figura do último homem, aquele que já não busca criar, mas apenas preservar-se no conforto e na previsibilidade. Esse homem se contenta com uma vida regrada, segura, sem grandes riscos nem grandes intensidades. Ele evita a dor, mas também abdica da verdadeira alegria. Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche ridiculariza essa figura, descrevendo-a como um ser que “piscou” diante do abismo da existência e escolheu a mediocridade.

    Essa crítica se aplica diretamente à ideia de uma vida reduzida à utilidade. Quando tudo é transformado em um meio para um fim – seja o trabalho produtivo, o acúmulo de bens ou a busca incessante por um “propósito” que justifique a existência – perde-se o valor intrínseco da vida. A vida útil é a vida capturada por uma estrutura que dita o que vale e o que não vale, separando os indivíduos de sua potência de existir e criar.

    O que Nietzsche propõe, em oposição a essa lógica da submissão, é a afirmação da vida. Afirmação que não depende de uma finalidade externa, mas de uma experimentação intensa da existência, onde cada instante tem valor por si mesmo. Esse é o princípio do eterno retorno: viver de modo a querer reviver cada momento infinitamente, de infinitas maneiras, porque a vida, em sua plenitude, já é justificação suficiente.

    Krenak e o Chamado para Sair da Máquina

    Krenak ressoa com essa afirmação da vida ao nos desafiar a sair da lógica utilitarista e a reconhecer a existência como um fluxo vivo, relacional, que não precisa ser justificado por nada além de si mesma. Ele percebe que não existimos para cumprir um papel dentro de um sistema que nos define como recursos produtivos – seja para o mercado, para o Estado ou mesmo para uma ideia abstrata de progresso.

    Viver não é acumular méritos nem produzir valor econômico. Viver, para Krenak, é estar em sintonia com o que nos atravessa e nos constitui – as forças da Terra, do tempo, do corpo, da coletividade. É recusar a domesticação dos sentidos e redescobrir formas de habitar o mundo que não sejam mediadas pelo consumo e pelo cálculo da utilidade.

    Se Nietzsche denunciava o esgotamento dos valores ocidentais e chamava à transvaloração – a criação de novos valores que afirmem a potência da vida –, Krenak olha para aqueles que sempre viveram fora da lógica ocidental: os povos indígenas, os ribeirinhos, os que nunca aceitaram que a existência deva se encaixar na estrutura produtivista moderna.

    Ambos perguntam: estamos vivendo ou apenas sobrevivendo? Estamos criando ou apenas repetindo?

    Se a vida não é útil, então o que ela pode ser? Krenak, como Nietzsche, não nos dá uma resposta pronta. Mas nos oferece o mais essencial: o convite para descobrir por nós mesmos.


    3. O Tempo Circular e a Vida na Terra

    O pensamento indígena rompe com a linearidade do tempo ocidental. Em A Vida Não É Útil, Krenak apresenta uma perspectiva onde o tempo não é uma flecha que aponta para o futuro, mas um movimento circular, vivo, no qual tudo se transforma sem que haja um fim definitivo.

    Essa visão ressoa com Bergson e sua crítica ao tempo cronológico. Para Bergson, o tempo vivido, o tempo da duração, é aquilo que realmente nos constitui. O tempo como experiência não é homogêneo nem linear – ele é fluxo, diferença, variação contínua.

    Deleuze e o Devir

    Deleuze desenvolve essa ideia ao mostrar que o tempo não deve ser reduzido a uma sequência de momentos fixos, mas compreendido como um devir. O pensamento da diferença propõe que a existência não se desenrola como uma linha reta, mas como múltiplos caminhos que se bifurcam, que criam e recriam novas formas de viver.

    Krenak está fora da obsessão ocidental pelo futuro, pelo desenvolvimento, pelo “para onde vamos”, e se concentra no que somos agora, no que podemos ser enquanto parte de um todo vivo.


    4. A Terra Como Corpo Vivo – O Comum em Spinoza

    Para Krenak, a Terra não é um recurso a ser explorado, mas um corpo vivo do qual fazemos parte. O modo de vida ocidental cortou essa relação, transformando a natureza em “matéria-prima”. Mas o que aconteceria se voltássemos a nos perceber como parte desse corpo maior?

    Em Spinoza, encontramos essa mesma noção de um “comum” que nos atravessa. Somos expressões singulares de uma mesma substância infinita, composta por infinitas relações e modos (ou seja, somos expressões da própria Natureza). O erro da humanidade, segundo Krenak, foi acreditar que pode se separar desse todo sem sofrer as consequências.

    A ideia de noções comuns em Spinoza nos ajuda a entender essa relação: quando reconhecemos aquilo que compartilhamos com outros seres, nossa potência aumenta. Quando negamos esse pertencimento, nos tornamos impotentes, isolados, fragilizados.


    5. O Riso e a Subversão da Seriedade

    Ailton Krenak utiliza o humor como uma ferramenta de resistência e desmonte das certezas ocidentais. Ele ri das políticas ambientais que prometem “salvar o planeta” enquanto perpetuam sua destruição, da obsessão por progresso que ignora a finitude dos recursos, da pressa dos brancos em buscar soluções que não questionem seu modo de vida. Seu riso não é um gesto de complacência, mas de desestabilização – uma forma de escancarar as contradições de um mundo que se leva a sério demais para perceber suas próprias falhas.

    Esse riso crítico ressoa com o risus sardonicus de Nietzsche – um riso que não apenas ironiza, mas que dissolve as estruturas do pensamento dominante. Em O Anticristo, Nietzsche denuncia como o cristianismo impôs um peso moral insuportável à existência, transformando a vida em um fardo a ser carregado com culpa e penitência. O riso, para ele, é uma forma de rompimento com essa seriedade opressiva, um modo de devolver à vida sua leveza e potência criadora.

    Da mesma forma, o riso de Krenak não é um escapismo ingênuo, mas uma rachadura na solenidade da modernidade. Ele desmonta a arrogância ocidental ao expor suas inconsistências, ridiculariza sua pretensão de universalidade e faz emergir, no lugar do discurso sério e civilizatório, outras formas de existência que não precisam da legitimação das grandes narrativas para se sustentar. Seu riso é, portanto, um gesto filosófico e político – uma afirmação da vida contra os sistemas que insistem em negá-la.


    Conclusão – Viver Fora da Máquina

    O que significa viver? Para Krenak, significa estar dentro do fluxo da existência, sem tentar reduzi-la a um sistema de produção e controle.

    Nietzsche, Spinoza, Deleuze e tantos outros também abordam esse problema: a vida humana foi sequestrada por valores que a enfraquecem. Krenak, a partir do pensamento indígena, nos mostra que outra forma de viver é possível.

    Não se trata de voltar ao passado ou rejeitar a tecnologia, mas de criar um outro presente, um outro modo de habitar o mundo. Um modo que afirme a vida em sua plenitude, que recuse o niilismo da utilidade e que se reconecte com a Terra como corpo vivo.

    Talvez a grande lição de A Vida Não É Útil seja esta: enquanto tentarmos fazer a vida servir a algo, perderemos sua riqueza. Mas se aceitarmos que a vida não precisa ser útil – que ela já é, que ela acontece, que ela pulsa – então talvez possamos finalmente começar a viver.

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