Conceitos Fundamentais: Imanência

A imanência é um dos conceitos fundamentais para entender o pensamento da diferença. Spinoza, Nietzsche, Deleuze e Guattari – cada um a seu modo – afirmam a imanência como a base para um modo de pensar e viver que não se submete a instâncias externas, transcendentais ou superiores.

Mas o que isso significa na prática? O que está em jogo quando falamos de um pensamento imanente e não transcendente?


O que é Imanência?

A palavra “imanência” vem do latim immanere, que significa “permanecer dentro”. Isso indica que tudo o que existe se dá dentro do próprio campo da existência, sem recorrer a um princípio externo que o determine ou justifique.

Em oposição, temos a transcendência, que implica sempre um “fora”, um ponto superior que governa, ordena ou dá sentido ao que está abaixo. A transcendência pode ser um Deus que criou e regula o mundo, uma verdade absoluta, um ideal moral, uma essência fixa ou uma razão superior que julga e guia a experiência.

O pensamento da imanência rejeita esse modelo. Ele não precisa de um princípio externo para justificar a existência – a vida não precisa de um fundamento fora dela mesma. A imanência afirma que tudo o que existe é produzido por relações internas e processos próprios, sem recorrer a um além ou a uma instância superior.


Spinoza e a Imanência: Deus ou a Natureza

Spinoza foi um dos primeiros a formular de maneira rigorosa um sistema filosófico baseado na imanência absoluta. Em sua obra Ética, ele rompe com a tradição dualista e cria uma visão do mundo onde Deus e Natureza são a mesma coisa (Deus sive Natura).

Isso significa que não existe um Deus transcendental que criou o mundo e o governa de fora, mas sim um princípio único e infinito, que se expressa na própria existência de tudo o que há. Em outras palavras, Deus não é um legislador ou um juiz acima do mundo, mas o próprio tecido da realidade em sua multiplicidade de expressões. Em outras palavras, as únicas leis são as leis da própria Natureza.

Essa concepção muda completamente a maneira de pensar a vida:

  • Não há pecado ou culpa metafísica, porque não existe um Deus julgador externo.
  • Não há finalidade transcendente ou destino predeterminado, porque tudo acontece por relações internas de causa e efeito.
  • O que importa não é obedecer a uma moral externa, mas compreender as forças que regem a existência e agir de forma a aumentar nossa potência.

Para Spinoza, viver segundo a imanência é entender a realidade tal como ela é, sem ilusões transcendentes, e a partir disso, encontrar modos de existir que ampliem nossa força de agir e sentir.


Nietzsche e a Morte de Deus: Derrubando a Transcendência

Nietzsche retoma essa crítica à transcendência de outra forma: ao anunciar a morte de Deus, ele não está apenas dizendo que o Deus religioso deixou de ser uma referência na modernidade, mas que todas as formas de transcendência que ainda regem nossas vidas devem ser superadas. Isso inclui a moral e as leis que dela derivam:

Deus pode ter morrido, mas seu rastro ainda sobrevive em muitas estruturas que continuam determinando a existência com base em um “fora”:

  • Os valores morais absolutos – ideias de “bem” e “mal” como algo fixo e universal.
  • Os ideais de Verdade transcendental – a crença de que há uma única verdade que deve ser descoberta e seguida.
  • As essências fixas da identidade – a ideia de que somos definidos por uma natureza inalterável, em vez de sermos processos em transformação.

A imanência, em Nietzsche, significa afirmar a vida tal como ela é, sem projetar sobre ela valores externos que a julgam insuficiente. Em vez de submeter a existência a ideais superiores, o desafio é criar novos valores, a partir do próprio movimento da vida.


Deleuze e Guattari: Imanência como Processo e Devir

Se Spinoza nos deu a base da imanência e Nietzsche nos mostrou a necessidade de romper com a transcendência de maneira completa, Deleuze e Guattari levaram essa ideia adiante, mostrando como a imanência se dá no próprio fluxo da existência e da criação.

Para eles, a imanência não é uma estrutura fixa, mas um processo contínuo, um campo de forças e relações em movimento. O pensamento não deve ser algo que busca alcançar um além ou uma verdade superior, mas sim algo que se faz no próprio mundo, como um ato criador.

A imanência se manifesta em tudo que acontece, nos encontros, nas intensidades, nas forças que se cruzam. Isso significa que:

  • Não existe uma essência pura ou um modelo ideal a ser seguido. Tudo se dá na relação entre forças na própria existência.
  • A vida não precisa ser justificada por algo externo, mas ser vivida como criação contínua.
  • O pensamento imanente não explica a realidade de fora, mas se torna parte dela, experimentando, compondo, inventando.

Em O que é a Filosofia?, Deleuze dirá que a imanência não tem um objeto fora dela – ela é um plano onde a vida se cria e se expressa diretamente, sem precisar de uma justificativa superior.


Imanência na Vida e na Cultura

A ideia de imanência não se restringe à filosofia – ela atravessa nossa forma de ver o mundo. No cotidiano, vivemos cercados por narrativas transcendentais que nos dizem como devemos ser:

  • A busca por um ideal de sucesso ou felicidade que nunca se realiza porque está sempre “lá na frente”, como uma promessa inalcançável.
  • A crença de que a verdade está em algo externo a nós, seja num líder, num dogma ou numa tradição.
  • A ideia de que precisamos nos adequar a um modelo ideal de identidade, papel social ou comportamento.

Pensar e viver a partir da imanência significa se libertar dessas amarras, entendendo que não há um destino, uma moral ou um sentido externo a ser seguido – há apenas a vida em sua potência de criação a cada acontecimento.

Por isso, a imanência é inseparável da potência. Em vez de viver segundo um modelo imposto de fora, trata-se de afirmar a própria existência em sua força singular, criando relações e composições que aumentem essa potência.


Conclusão

A imanência é tratar a vida sem hierarquias transcendentais, sem dependências de verdades superiores ou essências fixas.

  • Para Spinoza, é a compreensão de que tudo se dá dentro da Natureza, sem necessidade de um Deus ou uma Moral legisladora.
  • Para Nietzsche, é a superação dos valores transcendentais e a criação de novos modos de viver.
  • Para Deleuze e Guattari, é o pensamento e a existência como fluxo, como criação contínua, sem um ponto de referência fixo.

A imanência não propõe um modelo fechado, mas um modo de pensar e viver a partir da própria vida, onde cada um pode descobrir suas forças, criar seus próprios caminhos e afirmar sua existência sem se submeter a uma norma externa.

Viver a imanência é tomar a vida nas próprias mãos, não como um fardo, mas como potência.

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