Falar de “campo do possível” em Nietzsche exige compreender sua crítica radical à metafísica tradicional e à maneira como projetamos nossas esperanças e expectativas no futuro. Em sua obra, Nietzsche desmascara a ideia de que há um “possível” dado de antemão, uma série de opções pré-existentes das quais escolhemos. Para ele, essa crença é apenas um reflexo da fraqueza humana diante da vida: um mecanismo de defesa contra o caos e a indeterminação do real.
Nietzsche propõe uma inversão dessa lógica. Em vez de aceitar um possível já estabelecido – ou seja, um horizonte de opções determinado por experiências passadas e estados afetivos condicionados – ele nos convida a criar o possível. Isso significa deixar de lado as projeções idealizadas, abandonar a nostalgia dos valores herdados e inventar novas formas de existir, que não estejam presas ao ressentimento e à moral da fraqueza.
Este artigo explora como Nietzsche desmonta a noção de um possível predeterminado, como ele vincula essa crítica à sua ideia de transvaloração dos valores, e como a superação desse campo do possível pode levar a uma experiência mais afirmativa da existência.
1. O “Possível” como um Rebatimento do Passado
A primeira grande crítica de Nietzsche à ideia de um campo do possível está na noção de que o que chamamos de “possível” não passa, muitas vezes, de um rebatimento do já vivido. Ele percebe que nossa imaginação, ao tentar construir futuros, tende a repetir padrões que conhecemos. Isso acontece porque a mente humana é presa a uma estrutura reativa, que não consegue escapar dos moldes herdados e dos afetos sedimentados.
1.1. Ressentimento e a Projeção do Passado
Nietzsche associa essa dinâmica ao ressentimento. Para ele, o ressentimento é um modo de existência que olha para trás, que não consegue afirmar o presente e que vive projetando um futuro condicionado pelo que já aconteceu. Esse ressentimento cria uma ilusão de “possíveis”, que na realidade não passam de variações da mesma coisa, uma tentativa de reencenar os mesmos conflitos sob novas roupagens.
“O passado é aquilo que em nós se eterniza, e por isso é tão perigoso.” (Além do Bem e do Mal)
O perigo aqui está na ideia de que o passado nos define, e que o futuro deve ser uma mera continuidade dele. Nietzsche rompe com essa lógica, sugerindo que o possível não pode ser uma extensão do já vivido – ele é uma invenção genuína.
1.2. O Real como “Impossível”
Se nos prendemos ao que já aconteceu para definir o que pode acontecer, acabamos tornando o real impossível. Isso significa que jamais experimentamos a potência do presente, porque estamos sempre esperando que ele se encaixe em um esquema preexistente. Essa espera nos impede de agir e nos lança em um ciclo de frustração, pois o presente nunca será exatamente como o passado projetado.
Aqui, Nietzsche introduz um conceito fundamental: a criação do possível. Se nos libertamos da ilusão de um futuro condicionado pelo passado, podemos abrir espaço para novas formas de existência, novas maneiras de afirmar a vida sem precisar referenciá-la ao que já aconteceu.
2. O Falso Campo do Possível e a Moral da Fraqueza
Nietzsche percebe que essa fixação em um possível já dado não é apenas um erro intelectual, mas um sintoma de um problema mais profundo: a moral da fraqueza. Ele denuncia como a moral tradicional – especialmente a moral tradicional cristã (como controle de massas) – condicionou os indivíduos a esperarem por uma recompensa futura, em vez de se apropriarem ativamente da sua existência.
2.1. O Possível como um Dispositivo de Controle
Na moral dos escravos, o futuro sempre é projetado como uma compensação pela dor do presente. Esse futuro é um campo fechado de possibilidades que, na prática, nunca chega. O cristianismo institucionalizou esse esquema com a ideia da salvação, onde o verdadeiro sentido da vida não está no agora, mas em um além que promete redimir todo sofrimento.
Nietzsche ridiculariza essa lógica:
“É melhor ter um inferno do que um nada.” (Genealogia da Moral)
A frase evidencia como essa crença no possível predeterminado (seja na forma de uma utopia religiosa, seja como uma promessa política) é, na verdade, um medo introjetado do presente. Esse medo é o que alimenta as paixões tristes, como a culpa, a resignação e a inveja.
2.2. O Estado, a Moral e a Produção de Possíveis
Nietzsche entende que não é apenas a religião que opera com essa lógica. O Estado e a cultura também se apropriam desse mecanismo para manter o controle social. O Estado promete um possível regulado – um futuro garantido pela ordem, pelo progresso e pela obediência às normas. O capitalismo reforça isso ao oferecer infinitas possibilidades de consumo, mas sempre dentro de um espectro limitado que não ameaça sua estrutura.
Esse “possível” controlado impede a diferença. Ele faz com que todas as tentativas de mudança se movam dentro de um espaço já delimitado, onde nada realmente novo pode emergir. O resultado é uma sociedade que se move apenas dentro dos trilhos do já estabelecido, sem jamais inventar verdadeiramente outras formas de existir.
3. Criar o Possível: A Resposta de Nietzsche
Se tudo que conhecemos como “possível” é uma repetição do passado ou um dispositivo de controle, a resposta de Nietzsche é clara: é preciso destruir essa ilusão e criar um novo campo de possibilidades.
3.1. O Super-Homem como Criador de Possíveis
Nietzsche introduz a figura do super-homem (Übermensch) como aquele que não se contenta com o possível herdado, mas cria novas perspectivas para a existência. O super-homem não age dentro das coordenadas do já estabelecido; ele rompe com elas e inventa seu próprio modo de ser.
“O homem é algo que deve ser superado.” (Assim Falou Zaratustra)
Essa superação não significa uma melhoria progressiva dentro do mesmo sistema, mas sim uma transformação radical, onde a ordem dos afetos é questionada e transmutada por todos aqueles que têm um pensamento adequado sobre a ordem geral da natureza.
3.3. A Vontade de Potência e a Afirmação da Diferença
A saída definitiva da prisão do possível acontece através da vontade de potência. Diferente da vontade de poder (que busca controlar e dominar), a vontade de potência é a força criativa que gera novas formas de estar na vida. Ela não se orienta pelo que já foi, nem pelo que “pode ser” dentro dos limites estabelecidos, mas sim pelo que pode ser inventado a partir da própria afirmação da existência.
A criação do possível exige a superação do ressentimento e da moral da fraqueza. Em vez de esperar por um mundo ideal, Nietzsche propõe uma atitude ativa, onde o indivíduo se torna responsável por sua própria força e sua própria diferença.
Conclusão
Nietzsche nos convida a abandonar a ilusão de um possível já estabelecido, a reconhecer como essa noção nos prende a padrões passados e nos submete a dispositivos de controle. Em seu lugar, ele propõe a criação ativa do que pode ser possível – um processo de experimentação e afirmação da vida que não se prende a valores fixos nem a promessas futuras.
O desafio nietzschiano é radical: desinvestir o campo do possível para criar novas forças de existir. Isso significa abandonar a nostalgia, o ressentimento e a expectativa de um futuro redentor, substituindo tudo isso pela invenção constante de novas maneiras de estar no mundo.
O possível não nos espera: ele deve ser criado.