A ideia de que o desejo é a essência do ser encontra-se no cerne da filosofia de Spinoza e é retomada por Nietzsche, Deleuze e outros pensadores da imanência e da diferença. Para Spinoza, o desejo (cupiditas) não é um estado psicológico ou uma carência, mas sim a expressão ativa do conatus, o esforço fundamental de cada ser para perseverar e expandir sua existência. Nietzsche, por sua vez, reformula essa ideia ao substituir o conatus pela Vontade de Potência, dando ao desejo um caráter afirmativo, criador e perspectivista. Deleuze amplia essa concepção ao deslocar o desejo da lógica da falta para um campo de produção e expansão das potências do ser, rompendo com modelos tradicionais de subjetividade.
Mas o que significa dizer que o desejo é a essência do ser? Como ele se manifesta? Qual a relação entre desejo, potência e liberdade? Este artigo explora esses conceitos em profundidade, articulando a filosofia de Spinoza, Nietzsche e Deleuze para compreender o desejo como um acontecimento de potência.
1. Spinoza e o Desejo como Conatus
Para Spinoza, o desejo (cupiditas) é o próprio esforço do ser para perseverar na existência. Ele define:
“O desejo é o próprio conatus do homem, isto é, o esforço para perseverar no seu ser, quando esse esforço se refere simultaneamente à mente e ao corpo.” (Ética, III, Definição de Afetos I)
O conceito-chave aqui é o conatus, a tendência de cada ser para se manter na existência e buscar aquilo que favorece sua composição. Esse esforço não é um ato voluntário ou racional, mas a própria estrutura do ser em ação. O desejo, nesse sentido, não é uma simples inclinação psicológica, mas a potência do ser em devir.
O Desejo e a Alegria
Se o desejo é a essência do ser, ele se efetua sempre em relação a algo que pode aumentar ou diminuir nossa potência de agir. Isso leva Spinoza a distinguir dois afetos fundamentais:
- Alegria (Laetitia): Quando encontramos algo que favorece nossa composição, expandindo nossa potência.
- Tristeza (Tristitia): Quando encontramos algo que decompõe nossa composição, reduzindo nossa potência.
O desejo se realiza buscando sempre aquilo que amplia sua potência e evitando o que a enfraquece. Não há um “eu” que deseja: o desejo é o que constitui o próprio eu.
Desejo e Liberdade
A liberdade, para Spinoza, não é uma abstração moral ou um livre-arbítrio transcendente, mas agir de acordo com nossa natureza essencial. Quanto mais compreendemos as causas dos nossos afetos, mais ativos nos tornamos, ou seja, menos somos determinados passivamente por causas externas e mais afirmamos o desejo de forma autônoma. Esse é o verdadeiro sentido da liberdade: desejar com plena consciência da potência que nos constitui.
2. Nietzsche e a Vontade de Potência
Nietzsche reformula a noção de desejo ao substituir o conatus spinozano pela Vontade de Potência. Para ele, não há um ser que deseja, mas sim o desejo como força primária que cria o próprio ser.
A Vontade de Potência não é um instinto de sobrevivência, mas um impulso de superação, criação e diferenciação. Nietzsche critica as concepções que reduzem o desejo a uma carência (como em Platão e Schopenhauer), afirmando que o desejo não parte da falta, mas da afirmação da vida.
O Desejo como Afirmação
Diferente da tradição metafísica que associa o desejo à ausência de algo que deve ser preenchido, Nietzsche entende o desejo como expressão do excesso da vida. Ele afirma:
“Tudo o que é bom é instinto – e, por conseguinte, leve, necessário, livre.” (O Crepúsculo dos Ídolos)
Aqui, Nietzsche se opõe ao moralismo cristão e à domesticação dos instintos, que reprimem a potência do desejo e o transformam em culpa, ressentimento e frustração. O desejo não é algo a ser negado, mas aquilo que constitui a própria força da vida.
Ressentimento e Negação do Desejo
O ressentimento, conceito central em Nietzsche, surge quando o desejo é bloqueado e redirecionado contra si mesmo. A impossibilidade de afirmar a própria potência gera culpa e negação da vida. O cristianismo e a metafísica platônica, segundo ele, transformaram o desejo em pecado e instauraram uma moral baseada na fraqueza.
O Super-Homem (Übermensch) nietzschiano é aquele que supera essa moral da negação e assume o desejo como força criadora e afirmativa. Ele não deseja o que falta, mas deseja afirmar o que já é, tornando-se o criador de seus próprios valores.
3. Deleuze e Guattari: O Desejo como Produção e Rizoma
Na filosofia de Deleuze e Guattari, o desejo ganha um estatuto ainda mais radical: ele não é falta, mas produção. Diferente da psicanálise freudiana, que vê o desejo como algo a ser satisfeito, eles afirmam:
“O desejo não é falta, mas produção.” (Anti-Édipo)
Máquinas Desejantes e Fluxos de Intensidade
Para Deleuze e Guattari, o desejo opera como um campo produtivo, um fluxo de intensidades que se conecta e se expande. Não há um sujeito que deseja, mas máquinas desejantes, sistemas de conexão entre corpos, ideias e afetos.
Esse modelo rizomático do desejo rompe com a lógica linear da falta e do objeto de desejo. O desejo não busca uma satisfação final; ele se efetua constantemente na multiplicidade de conexões possíveis.
Desejo e Capitalismo
No capitalismo, argumentam Deleuze e Guattari, o desejo é capturado e transformado em mercadoria e consumo. O sistema reorganiza a produção desejante em termos de carência artificial, criando a ilusão de que sempre falta algo para que o desejo seja plenamente satisfeito. Assim, o desejo não pode mais afirmar sua própria potência, mas é reduzido a um circuito de demandas reguladas pelo mercado.
A libertação do desejo, nesse contexto, significa romper com essa captura e resgatar o desejo como força livre e criadora.
O Desejo como Acontecimento de Potência
O desejo não é um simples impulso biológico nem uma carência a ser preenchida. Para Spinoza, Nietzsche e Deleuze, o desejo é a própria essência do ser, o que nos coloca em relação com o mundo e com a nossa própria potência.
- Spinoza nos ensina que o desejo é o esforço para perseverar na existência, e que sua efetuação se dá na alegria e no conhecimento adequado.
- Nietzsche nos mostra que o desejo não parte da falta, mas da potência, e que a vida só se afirma quando o desejo se torna criador.
- Deleuze e Guattari expandem essa noção ao pensar o desejo como produção rizomática, fluxo e conexão, desmontando as capturas impostas pela moral, pela psicanálise e pelo capitalismo.
A questão fundamental não é apenas o que desejamos, mas como desejamos. Se o nosso desejo está capturado por forças externas que o reduzem a consumo e ressentimento, ou se ele se efetua plenamente como criação e acontecimento de potência. Como Spinoza já implicava, ao desejo nada falta—ele não carece de nada além de sua própria efetuação.
O desejo, afinal, não é o que nos falta, mas o que nos constitui.