A distinção entre pensamento e opinião é uma das questões mais fundamentais da filosofia. Desde a Grécia Antiga, filósofos como Platão e Aristóteles já apontavam a fragilidade das opiniões (doxa) em contraste com o verdadeiro conhecimento (episteme). No entanto, essa questão ganha contornos ainda mais complexos quando analisada sob a ótica da filosofia da imanência, especialmente com Baruch Spinoza, Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze e Michel Foucault.
A problemática não se trata de uma hierarquia entre o que é verdadeiro e o que é falso, mas toca no modo como a realidade se constrói: como a linguagem, os afetos e as relações de poder modulam nossa percepção do real? Como memórias podem ser manipuladas e falsas certezas podem surgir de discursos, signos e imagens?
Neste artigo, exploraremos a diferença entre pensamento e opinião, a crítica filosófica à crença na verdade absoluta e como a linguagem pode tanto ampliar a potência do pensamento quanto aprisioná-lo em ilusões e falsas memórias.
1. O Que Diferencia o Pensamento da Opinião?
A opinião é, de forma geral, um juízo baseado em impressões imediatas, crenças herdadas e ideias prontas que circulam na cultura e na sociedade. O pensamento, por outro lado, envolve um processo ativo de diferenciação, criação e produção de sentido.
A Crítica de Platão e Aristóteles
Platão distingue a doxa (opinião) da episteme (conhecimento verdadeiro). Para ele, a opinião é instável e mutável, pois se baseia em percepções superficiais e pode ser facilmente manipulada. Já o verdadeiro conhecimento se apoia na razão e em ideias imutáveis que só podem ser alcançadas pelo pensamento.
Aristóteles desenvolve essa ideia ao apontar que a opinião está ligada ao senso comum e à retórica persuasiva, enquanto o pensamento filosófico busca fundamentos sólidos para compreender a realidade.
Espinosa e a Construção do Pensamento Adequado
Na filosofia de Baruch Spinoza, essa distinção ganha novos contornos. Em sua Ética, ele estabelece três gêneros de conhecimento:
- Imaginação (opinião, conhecimento inadequado) – Baseado em impressões, afetos imediatos e crenças herdadas, sem compreensão das causas.
- Razão (pensamento adequado) – Quando compreendemos as relações causais das coisas, organizamos nossas ideias de forma coerente e superamos ilusões.
- Intuição (conhecimento absoluto) – O nível mais elevado do conhecimento, no qual compreendemos a totalidade de um conceito a partir da experiência direta e da conexão com a potência da vida.
A opinião se encaixa no primeiro gênero de conhecimento: trata-se de uma percepção limitada e fragmentada da realidade, geralmente formada por afetos confusos e preconceitos. O pensamento adequado, por sua vez, surge quando compreendemos as causas reais das coisas e abandonamos interpretações meramente subjetivas.
Para Espinosa, quanto mais passivos somos diante das afecções do mundo, mais vulneráveis ficamos às opiniões. Quanto mais ativos e capazes de compreender as relações entre as coisas, mais livres nos tornamos.
Nietzsche e a Opinião Como Instrumento de Poder
Friedrich Nietzsche avança nessa crítica ao mostrar que a verdade, muitas vezes, não passa de um conjunto de opiniões cristalizadas. Ele afirma que as verdades não são descobertas, mas inventadas e sustentadas pelo poder. O que chamamos de verdade é, na maioria das vezes, um conjunto de metáforas, ilusões e convenções sociais que foram repetidas tantas vezes que deixaram de ser questionadas.
Nietzsche também destaca o perigo da ressentimento, que transforma opiniões em dogmas morais. Por exemplo, quando uma pessoa ressentida se sente inferiorizada, ela pode transformar essa frustração em uma crença de que aqueles que a superam são “maus” ou “corruptos”, ao invés de compreender as forças que moldam sua própria vida.
Assim, o pensamento ativo é sempre uma criação, enquanto a opinião reativa é um julgamento fixo, frequentemente enraizado no ressentimento e na negação da vida.
Deleuze e Guattari – Pensar é Criar, Não Repetir
Para Gilles Deleuze e Félix Guattari, a grande questão não é apenas que as opiniões são frágeis, mas que o próprio sistema educacional, cultural e político incentiva a reprodução de opiniões e não a criação de pensamento. Em O Que é a Filosofia?, eles argumentam que o pensamento não é simplesmente uma busca pela verdade, mas um ato de criação.
O pensamento autêntico não busca representar o mundo, mas criar novas possibilidades de existência. Por isso, ele não se submete à lógica do “certo e errado”, mas do que pode gerar novas forças e conexões.
2. O Papel da Linguagem na Criação de Falsas Memórias
Se a opinião pode se cristalizar como “verdade”, a linguagem é um dos principais mecanismos dessa cristalização. Palavras e imagens não apenas representam a realidade, mas também produzem efeitos reais sobre nossa percepção e nossa memória.
Foucault e o Poder do Discurso
Michel Foucault mostrou em suas obras que o discurso não é apenas uma descrição do mundo, mas um campo de batalha onde se decide o que pode ou não ser dito, o que é válido ou inválido, o que é “real” e o que não é.
Um exemplo claro disso está na medicina e na psiquiatria: ao nomear uma condição psicológica como “transtorno”, a sociedade passa a interpretar o comportamento de alguém à luz dessa categoria, mesmo que essa condição seja, em grande parte, um efeito dos próprios discursos sobre ela.
Assim, o discurso não apenas reflete a realidade – ele a constrói.
Linguagem e Memória – Como Criamos Falsas Realidades
A linguagem não apenas transmite ideias, mas pode moldar nossa memória e percepção da realidade. Isso acontece de diversas formas:
- “Ouvir dizer” como construção de memória – Muitas vezes, tomamos informações que ouvimos repetidamente como se fossem experiências próprias. Esse efeito pode ser visto na mídia, nas redes sociais, em discursos políticos, etc.
- Associações inconscientes – Como mostra Espinosa, quando experimentamos um afeto forte em relação a algo, nossa mente pode associá-lo a um objeto ou pessoa errados. Assim, podemos “lembrar” algo de forma distorcida, porque a memória é afetiva, e não apenas racional.
- A fabricação de consenso – Como Nietzsche aponta, a verdade é muitas vezes apenas a opinião de quem tem mais poder para impô-la. Quando um discurso se repete exaustivamente, ele se torna um “fato” mesmo sem base real.
O Caso das Fake News e da “Pós-Verdade”
Nos dias atuais, esse fenômeno se intensifica com as redes sociais, onde a informação circula não pelo seu grau de veracidade, mas pelo seu impacto emocional.
- Se uma informação gera raiva, medo ou esperança, ela se espalha mais rapidamente, independentemente de sua veracidade.
- Como as redes funcionam com algoritmos que reforçam as opiniões que já temos, as pessoas passam a acreditar que suas opiniões são verdades absolutas, sem perceber que estão em um sistema fechado de repetição.
3. Pensar é Criar, Não Apenas Julgar
Se a opinião se caracteriza por uma fixação em crenças herdadas e juízos prontos, o pensamento, ao contrário, se movimenta, experimenta, produz novas conexões. A verdadeira diferença não está entre “ter razão” ou “estar errado”, mas entre agir como parte de um sistema de repetições ou se abrir à possibilidade de compreender as causas reais do que nos atravessa.
Spinoza nos ensina que a liberdade não está em julgar, mas em compreender. Nietzsche mostra que toda crença é efeito de um jogo de forças, e que a vida se afirma não pela busca de verdades absolutas, mas pela criação de novas perspectivas. Deleuze nos lembra que pensar não é refletir sobre o que já existe, mas um ato de invenção.
Se a linguagem pode capturar, cristalizar e reduzir nossa experiência, ela também pode ser um vetor de diferenciação e abertura. O desafio não é simplesmente escapar das armadilhas do discurso dominante, mas perceber como os signos que nos atravessam operam em nossa existência – quais conexões nos restringem, quais nos abrem para novas formas de estar na vida.
Pensar, então, não é buscar certezas reconfortantes, mas sustentar um estado de atenção e escuta. Não se trata de acumular mais opiniões, mas de aprender a diferenciar o que nos afeta. Onde há pensamento, há movimento. Onde há apenas opinião, há estagnação.
Pensar exige esforço, exige atenção, mas é a única forma de viver ativamente, e não como um reflexo das forças que nos atravessam.